domingo, 29 de dezembro de 2013

Boto da Amazônia encanta, mas se torna isca para pescaria ilegal

HAROLDO CASTRO, DE MANAUS (TEXTO E FOTOS)
20/12/2013 18h54 - Atualizado em 21/12/2013 10h48
O boto-vermelho – também chamado de cor-de-rosa por aqueles que não vivem na Amazônia – possui grande destreza de movimentos e sua nadadeira peitoral (à mostra) demostra ampla flexibilidade (Foto: Haroldo Castro/ Época)


As histórias do boto povoam o imaginário dos ribeirinhos amazonenses. Quase todo pescador tem raiva – e, algumas vezes, medo – do animal. Esperto e rápido, o boto consegue ludibriar os ribeirinhos e logra roubar seus peixes, furando e destroçando redes de pesca. O mito do boto que se transforma em um jovem sedutor, vestido de branco, piora sua fama. A moça desprevenida que engravida acaba culpando o animal, o que deixa os homens ainda mais furiosos e ameaçados pelo boto vermelho, como ele é chamado na Amazônia.
Por outro lado, para o resto do mundo, o boto-cor-de-rosa (tradução do nome inglês pink river dolphin) é um mamífero aquático dos mais carismáticos, tão querido como baleias e os golfinhos do mar. Sua inteligência e seu elaborado sistema de ecolocalização encantam biólogos e sua velocidade e flexibilidade fascinam aqueles que conseguem vislumbrá-lo nas águas vermelhas e transparentes do rio Negro.

O boto pode chegar a 2,5 metros de comprimento e a pesar 180 quilos. Seu peito é, de fato, cor-de-rosa; mas dentro da água cor-de-conhaque do rio Negro ele pode parecer avermelhado (Foto: Haroldo Castro/ Época)

Um boto passa por baixo de um flutuante, cortando as águas escuras e cristalinas do rio Nego (Foto: Haroldo Castro/ Época)

Entre amor e ódio, se o boto (cor-de-rosa ou vermelho) continua dando sustos nos pescadores, ele também vem apaixonando cada vez mais os visitantes. Há cerca de duas décadas, Dona Marilda, do vilarejo Novo Airão, começou a promover a observação dos botos em um flutuante às margens do rio Negro. Muitas outras iniciativas se seguiram, inclusive a de hotéis.
Márcia Ferreira Mesquita, de 39 anos, nasceu e se criou nas redondezas da comunidade São Thomé, parte do município de Iranduba, AM. Quando Márcia era menina, o local ficava a um dia de canoa de Manaus; hoje o percurso leva apenas 30 minutos com uma voadeira. A pescadora conta que sua história com os botos começou há 10 anos, ao montar uma barraca na praia para vender bebidas e petiscos para eventuais visitantes.
Quando limpava os peixes no local (chamado hoje de Praia Amigo do Boto), ela jogava o resto na água e os botos vinham comer. Em 2007, apareceu um boto pequeno que tinha um arame enrolado no bico. “Deve ter sido maldade de algum pescador raivoso”, diz Márcia. Com a ajuda da AMPA (Associação Amigos do Peixe-Boi), o boto foi cuidado e o animal passou a visitar Dona Márcia com frequência. “Meteco foi o primeiro boto a brincar com meus filhos. Todos os botos gostam muito de brincar com bola, galho ou pedaço de pau”, afirma.
No ano seguinte, Márcia e seu marido David Coelho de Souza, com a ajuda de seus sete filhos, montaram um flutuante que fica a 50 metros da praia. Hoje, recebem visitantes de todos quadrantes, fascinados com a possibilidade de ver botos bem de perto. Márcia cobra apenas 20 reais pela experiência singular. “As pessoas podem entrar na água, sempre com salva-vidas, mas peço para que não toquem nos botos”, diz. Na verdade, quem chega perto é mesmo o boto. Curioso e brincalhão, ele roça e encosta nos banhistas, dá pequenos empurrões ou puxa o salva-vidas.

O autor brinca com uma bola com Meteco, o mais folgazão dos botos de São Thomé. Meteco acabou levando bola para as profundezas do rio Negro.  (Foto: Haroldo Castro/ Época)

Márcia segue as instruções normativas e, quando chega ao flutuante, oferece alguns peixes aos botos. “Sempre damos espécies que eles estão acostumados a comer, como o jaraqui. E deixamos eles com fome para que eles continuem caçando”, afirma. “Os visitantes não podem alimentar os botos, pois é preciso conhecer o comportamento e os movimentos dos animais.”

Márcia Ferreira Mesquita, a cuidadora dos botos da Praia Amigo do Boto, em São Thomé, oferece um jaraqui a um dos animais (Foto: Haroldo Castro/ Época)
Márcio, filho de 4 anos de Márcia e Daniel, nada embaixo d´água como se fosse um boto (Foto: Haroldo Castro/ Época)

“Os botos transformaram a vida de nossa família. Se antes David e eu tínhamos raiva por que eles rasgavam nossas redes, hoje nós nos dedicamos totalmente a eles. Queremos sua proteção”, diz Márcia. O casal pensa investir em um flutuante maior, com a comodidade de um banheiro, onde os visitantes poderão trocar de roupa para entrar na água. Pensam também organizar um pequeno museu-escola na comunidade. “Hoje considero o boto como meu patrão, é ele que dá meu sustento.”
Infelizmente, nem todos pescadores pensam como Márcia e Daniel e a situação dos botos tem se deteriorado bastante na última década, período durante o qual a população diminuiu em 10%, segundo pesquisadores da AMPA. A razão não é o contato dos botos com os turistas – este, sim, tem ajudado a criar uma maior conscientização ambiental – mas um crime simplesmente imbecil. O boto Inia geoffrensis é protegido por lei, mas ele é capturado ilegalmente com arpões e redes, assassinado de forma brutal com golpes na cabeça e seu corpo é fatiado para servir como isca na pesca de um bagre carniceiro, a piracatinga (do tupi guarani, pirá + catinga, peixe fedido).
A piracatinga era antes comercializada somente na Amazônia, mas hoje está sendo vendida em supermercados de diversas capitais brasileiras sob o nome ingênuo de “douradinha”. Antes de comprar um filé de “peixe fedido”, saiba que a “douradinha” pode ter provocado a morte de um boto!

sábado, 7 de dezembro de 2013

22/10/2013 - 02h57

Projeto usa botos do rio Negro (AM) para reabilitar crianças com deficiências

fonte Folha de São Paulo
JULIANA VINES
ENVIADA ESPECIAL A IRANDUBA (AM)


Leonardo Cavalcante, 15, nada tão bem que poderia ser chamado de menino-boto. Há oito anos, quando começou a fazer terapia com botos-cor-de-rosa, no rio Negro, em Iranduba (25 km de Manaus), ele mal andava. "Não tinha equilíbrio, só caía", diz.
Leonardo nasceu sem os braços e com uma diferença de altura entre as pernas. Ele foi um dos primeiros pacientes de boto-terapia do fisioterapeuta Igor Simões Andrade, 37, que adaptou para a realidade amazônica uma técnica de tratamento já existente no exterior, feita com golfinhos em cativeiro.
"No primeiro dia tive medo de tudo", lembra o menino, que aprendeu a nadar imitando o movimento dos animais. "Vejo como eles fazem e vou atrás. Hoje peguei carona com um, nadei ao lado e depois fiquei em cima dele", conta.

Renzo Gostoli/Divulgação
O fisioterapeuta Igor Simões Andrade com Wendel Albuquerque, 3, em sessão de boto-terapia no rio Negro (AM)
O fisioterapeuta Igor Simões Andrade com Wendel Albuquerque, 3, em sessão de boto-terapia no rio Negro (AM)
Desde o início do projeto, aprovado há quatro anos pelo Ibama, Andrade contabiliza cerca de 600 atendimentos, quase todos feitos de graça em crianças com deficiências motoras, síndrome de Down ou doenças do sangue, como anemia falciforme, encaminhadas por instituições parceiras do terapeuta.
A atividade, que antes era feita uma vez por mês com o apoio de um hotel da região, vai ser ampliada agora graças a uma parceria com a Ampa (Associação Amigos do Peixe-Boi). O objetivo é atender 70 crianças por ano. Hoje há fila de espera.
"Meu sonho é fazer uma sessão por semana", diz Andrade. A cada encontro, ele leva a um flutuador no meio do rio um grupo de quatro ou cinco crianças. Antes de cair na água, elas são atendidas individualmente pelo fisioterapeuta, que é especialista em rolfing, técnica de terapia corporal surgida nos EUA (mais informações no site bototerapia.com).
Depois, as crianças ficam na água de 20 a 30 minutos, quando tocam o animal e fazem exercícios inspirados no rolfing. "Imitamos movimentos do boto, trabalhamos a força nas pernas, capacidade respiratória, flexibilidade."
Mineiro radicado em Manaus desde 2005, Andrade conquistou a amizade de um grupo de botos brincando com bolinhas. "A empatia foi instantânea, mas me preparei por quase um ano antes de trazer as crianças."
Hoje são cerca de 20 animais, que ficam livres e são atraídos pelas bolinhas na hora da sessão. Alguns têm até nome, como Moleque e Menteco.
O paciente-modelo, Leonardo, vai a todas as sessões e ajuda a monitorar novos adeptos, como Ezequiel Ruiz da Silva, 6, que está no quarto encontro. A avó, Maria Auxiliadora de Oliveira Ruiz, 53, já vê resultados. "Ele era muito inquieto, tem problemas na coordenação motora. Agora está mais centrado, até a professora elogiou."
BICHO-TERAPEUTA
A terapia assistida por animais não é novidade. As técnicas mais conhecidas usam cães ou cavalos, mas há também terapia com pássaros, coelhos, roedores, gatos.
Em geral, o animal serve como ponte entre o paciente e o terapeuta, quebrando o gelo e fortalecendo o vínculo, diz Ceres Faraco, veterinária e doutora em psicologia.
"Ele serve como motivação para o tratamento. Pode ser usado para tratar pessoas com transtornos psiquiátricos, motores e doenças degenerativas."
Segundo o fisiatra Daniel Rubio, da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, apesar dos bons resultados, ainda falta comprovação científica para os resultados das terapias com bichos. Mais ainda para a que usa golfinhos ou botos.

Renzo Gostoli/Divulgação
Leonardo Cavalcante, 15, antes da sessão de boto-terapia
Leonardo Cavalcante, 15, antes da sessão de boto-terapia
"Sem dúvida há uma riqueza de estímulos, principalmente em associação ao meio aquático. Mas não há garantias de seus benefícios."
Faraco faz ressalvas quanto à segurança do tratamento. "Não são animais previsíveis como cães. Eles podem interagir de forma violenta. Há risco de passar ou pegar uma infecção do animal."
Segundo Andrade, não há casos de infecções entre crianças do projeto. Vera Silva, pesquisadora do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e conselheira da Ampa, diz que as crianças não têm doenças que possam transmitir aos botos. "A convivência com eles é prazerosa, tudo contribui para melhorar a motivação dos pacientes."
A jornalista viajou a convite do Oi Futuro