Boto da Amazônia encanta, mas se torna isca para pescaria ilegal
HAROLDO CASTRO, DE MANAUS (TEXTO E FOTOS)
20/12/2013 18h54
- Atualizado em
21/12/2013 10h48
As histórias do boto povoam o imaginário dos ribeirinhos amazonenses.
Quase todo pescador tem raiva – e, algumas vezes, medo – do animal.
Esperto e rápido, o boto consegue ludibriar os ribeirinhos e logra
roubar seus peixes, furando e destroçando redes de pesca. O mito do boto
que se transforma em um jovem sedutor, vestido de branco, piora sua
fama. A moça desprevenida que engravida acaba culpando o animal, o que
deixa os homens ainda mais furiosos e ameaçados pelo boto vermelho, como
ele é chamado na Amazônia.
Por outro lado, para o resto do mundo, o boto-cor-de-rosa (tradução do
nome inglês pink river dolphin) é um mamífero aquático dos mais
carismáticos, tão querido como baleias e os golfinhos do mar. Sua
inteligência e seu elaborado sistema de ecolocalização encantam biólogos
e sua velocidade e flexibilidade fascinam aqueles que conseguem
vislumbrá-lo nas águas vermelhas e transparentes do rio Negro.
Entre amor e ódio, se o boto (cor-de-rosa ou vermelho) continua dando
sustos nos pescadores, ele também vem apaixonando cada vez mais os
visitantes. Há cerca de duas décadas, Dona Marilda, do vilarejo Novo
Airão, começou a promover a observação dos botos em um flutuante às
margens do rio Negro. Muitas outras iniciativas se seguiram, inclusive a
de hotéis.
Márcia Ferreira Mesquita, de 39 anos, nasceu e se criou nas redondezas
da comunidade São Thomé, parte do município de Iranduba, AM. Quando
Márcia era menina, o local ficava a um dia de canoa de Manaus; hoje o
percurso leva apenas 30 minutos com uma voadeira. A pescadora conta que
sua história com os botos começou há 10 anos, ao montar uma barraca na
praia para vender bebidas e petiscos para eventuais visitantes.
Quando limpava os peixes no local (chamado hoje de Praia Amigo do
Boto), ela jogava o resto na água e os botos vinham comer. Em 2007,
apareceu um boto pequeno que tinha um arame enrolado no bico. “Deve ter
sido maldade de algum pescador raivoso”, diz Márcia. Com a ajuda da AMPA
(Associação Amigos do Peixe-Boi), o boto foi cuidado e o animal passou a
visitar Dona Márcia com frequência. “Meteco foi o primeiro boto a
brincar com meus filhos. Todos os botos gostam muito de brincar com
bola, galho ou pedaço de pau”, afirma.
No ano seguinte, Márcia e seu marido David Coelho de Souza, com a ajuda
de seus sete filhos, montaram um flutuante que fica a 50 metros da
praia. Hoje, recebem visitantes de todos quadrantes, fascinados com a
possibilidade de ver botos bem de perto. Márcia cobra apenas 20 reais
pela experiência singular. “As pessoas podem entrar na água, sempre com
salva-vidas, mas peço para que não toquem nos botos”, diz. Na verdade,
quem chega perto é mesmo o boto. Curioso e brincalhão, ele roça e
encosta nos banhistas, dá pequenos empurrões ou puxa o salva-vidas.
“Os botos transformaram a vida de nossa família. Se antes David e eu
tínhamos raiva por que eles rasgavam nossas redes, hoje nós nos
dedicamos totalmente a eles. Queremos sua proteção”, diz Márcia. O casal
pensa investir em um flutuante maior, com a comodidade de um banheiro,
onde os visitantes poderão trocar de roupa para entrar na água. Pensam
também organizar um pequeno museu-escola na comunidade. “Hoje considero o
boto como meu patrão, é ele que dá meu sustento.”
Infelizmente, nem todos pescadores pensam como Márcia e Daniel e a
situação dos botos tem se deteriorado bastante na última década, período
durante o qual a população diminuiu em 10%, segundo pesquisadores da
AMPA. A razão não é o contato dos botos com os turistas – este, sim, tem
ajudado a criar uma maior conscientização ambiental – mas um crime
simplesmente imbecil. O boto Inia geoffrensis é protegido por lei, mas
ele é capturado ilegalmente com arpões e redes, assassinado de forma
brutal com golpes na cabeça e seu corpo é fatiado para servir como isca
na pesca de um bagre carniceiro, a piracatinga (do tupi guarani, pirá +
catinga, peixe fedido).
A piracatinga era antes comercializada somente na Amazônia, mas hoje
está sendo vendida em supermercados de diversas capitais brasileiras sob
o nome ingênuo de “douradinha”. Antes de comprar um filé de “peixe
fedido”, saiba que a “douradinha” pode ter provocado a morte de um boto!